Hoje publico um belíssimo texto de Marina Colasanti (todos os textos dela são belos). No conto, “A moça tecelã”, a autora, com inteligência, ignora qualquer limite entre a “fantasia” ou a “realidade” e cria uma delicada saga familiar, de ambição e desencanto, onde, com a maior sutileza, o poder feminino faz e refaz o destino. Agradeço aos meus alunos e alunas Maria de Nazaré, Sueli Alves, Juliana de Carvalho, Eduardo dos Santos, Wellington de Oliveira, Carlos Henrique Pereira, Thais Vilela, Douglas Valentin, Thiago dos Santos e Larissa de Souza pelas bonitas produções inspiradas no texto trabalhado em classe e que hoje embelezam a postagem do Mire e Veja Travessia.
Boa leitura e/ou releitura a todos e todas!
A MOÇA TECELÃ
Marina Colasanti*
Marina Colasanti*
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.
Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.
Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio do ponto dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.
Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.
— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.
— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
— É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo.
Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.
*Marina Colasanti (1937) nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde 1948 vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei, mas não devia e também por Rota de Colisão. Colabora, também, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.
Saudações, caros e caras!
ResponderExcluirProfessora Eliran... ufa, quanto tempo!!!
Bom voltar aqui para ler este conto... simples, sutil, gostoso de ler. Gosto também do tema - penso que machismo já era, coisa retrógrada, ultrapassada... sem, é claro, aquele feminismo radical que prega a "masculinização" da mulher.
Outro ponto de destaque é o contraponto "simplicidade X ego". Grandesa, poder, riquesas... essas coisas afastam as pessoas. Um palácio com númerosos aposentos, servos, tesouros, a moça tecelã não queria isso... queria apenas tecer, construir sua historia, apenas com aquilo que precisava...
O que precisamos? O que queremos? Precisamos do que queremos? E queremos o que precisamos? Enfim...
Carlos, que desenho é esse??? Pena que não tem Ed. Artística na 3ªEM... Parabéns, retratou bem o conto... sutileza, leveza, simplicidade...
Gente... vou indo...
aguardando novos comentários para entrar com a minha "réplica"... rsrsrsr (e, ainda tô no clima... faltam três dias... enfim..)
Tchau, tchau!
'Té mais...
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá galera, Olá Profa.......
ResponderExcluirParabéns pela postagem. Gosto muito deste conto. Reler é reviver e viver novas coisas. Quero parabenizar também a todos os alunos e alunas que com muita "arte" retrataram mais do que bem o conto. Parabéns a todos.
A moça tecelã tem o papel semelhante ao do Criador. Tecer tudo. Tecer a vida. Infelizmente, a ambição, a luxúria e a avareza de algumas pessoas fazem com que Deus fique com vontade de desfazer tudo. Mas, ao contrário da Moça Tecelã ele nos deixa livres e não quer acabar com nossa liberdade e sim nos ajudar a lidar com ela.
Nós tecemos nossa vida a cada dia através de nossas escolhas. Nunca é tarde para começar de novo e tecer o que queremos. Basta força de vontade e coragem para mudar e tecer melhor.
Até mais galera... Bjs Profa... Fui...
P.S. Leandro, obrigado pelo elogio, mas este desenho é do Carlos Henrique Pereira, da minha sala. Não meu, eu sou Carlos Henrique Ferreira. Mesmo assim obrigado, eu transmitirei o elogio. Até mais... fui...
Carlos...
ResponderExcluirPuxa vida, por causa de um "F" e de um "r" a mais... rssrsrsrsr
Mas valeu... o teu tbm deve ter ficado legal...
Profa: aguardando noticias sobre o Sarau...
Abraços a todos!
Oi professora..nossa achei muito legal..todos os desenhos e a História..e fiquei muito feliz por que o meu desenho esta aqui para todos do blog verem..por isso qe eu falo qe sou o aluno preferido da professora^^ e ela é a minha professora preferida^^..
ResponderExcluir“Belíssimo texto.” Realmente instiga o pensar.
ResponderExcluirNão pude vê-lo em sala, mas, felizmente, posso ver aqui no blog.
As produções também estão belas. Simples, mas de um lirismo admirável.
O texto traz uma reflexão individual. Do ponto de vista pessoal.
Os comentários, do Leandro e do Carlos Henrique, trouxeram uma boa reflexão. Cada um, segundo o seu ponto de vista, parafraseou muito bem.
“[...] Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte [...]”
Temos o poder de tecer a nossa história. As linhas que escolhemos é que formará o que queremos tecer.
A moça teleçã quando queria tecer o dia escolhia a linha clara, tecia e logo surgia a claridade da manhã. Quando a chuva, escolhia fios de prata. Quando sentia sede, a lã cor de leite era usada para saciá-la.
Se quisermos ser advogados, escolhemos a linha do curso de direito. Se engenheiros, a linha da engenharia. Sentimos fome, a linha do trabalho nos trará o alimento. Escolha a linha certa e, assim, tu serás muito feliz.
A moça tecelã trouxe para si a solidão e nela trouxe um marido, tecido para sua companhia.
“[...] Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete [...]”
O marido representa o capital, o dinheiro. Quando tecemos nossa vida em busca do dinheiro, junto com ele vem a ambição, a avareza, a submissão. A moça tecelã vivia pelos desejos dele. A princípio foi feliz, mas depois teve que servir-lo, enquanto sua vida estava aprisionada, “no mais alto quarto da mais alta torre”. Entretanto, viver era tudo o que ela queria.
O final está obvio. Peço licença para usar as palavras do Carlos Henrique:
“Nunca é tarde para começar de novo e tecer o que queremos. Basta força de vontade e coragem para mudar e tecer melhor.”
“Tecer era tudo o que ela fazia. Tecer era tudo o que ela queria fazer.”
Atenciosamente.
Lê: quanto tempo mesmo. Saudades! Que bom que você gostou do conto! Concordo com suas ideias. Acredito que o homem não é superior à mulher e vice-versa. São diferentes. E é muito importante respeitar essas diferenças. Como também é importante conhecer e valorizar o sentimento. Como diria Adélia Prado, “a coisa mais fina do mundo é o sentimento”. A ambição pode “destecer” a felicidade.
ResponderExcluirTambém concordo que é pena não ter Ed. Artística nos 3ºs. Viu quanto talento?
Gostei da ideia da “réplica”... Poderíamos aderir, não é?
Beijos e saudades!
Carlos: Achei muito pertinente a analogia que você fez moça tecelã = papel do Criador. “Tecer a vida”. E quantas vezes as pessoas buscam a felicidade em coisas materiais, acumular bens, riquezas, muitas vezes em detrimento da própria dignidade e felicidade e/ou da dignidade e felicidade dos outros...
Também gostei da sua atitude, aparentemente simples, de comunicar ao Leandro que a ilustração à qual ele se referiu é do “outro Carlos”. Não acatou silenciosamente o elogio que não lhe pertencia. Isso é atitude de grandeza, bem típica de pessoas como você: rica de espírito. Parabéns Carlos!
Beijos!
Lê: pois não é que o sarau vai sair? Com a graça de Deus. Aguarde que lhe mandarei mais notícias por e-mail. Em breve! E conto com você!
Wellington: que bom que você gostou do texto e dos desenhos. Parabéns pelo seu desenho que realmente ficou muito bonito e está embelezando meu blog. Eu lhe agradeço. Você realmente é um aluno muito querido. Ah! Agora descobri o porquê de você estar sempre entrando depois na troca de aula... Passeando pelos 1ºs, não é? Muito zelo com aquela menina, hein? É gente finíssima!
Beijos!
E volte sempre ao mire e veja.
Lucas: que alegria ver vc aqui! Agora sabendo quem realmente é o Mr. Cuca, a alegria é maior ainda!!! Pena que vc não estava em aula quando trabalhamos o texto. Nesse ponto, o mire e veja presta um bom serviço, pois vc e muitas outras pessoas tiveram a oportunidade de ler o texto e ver algumas ilustrações.
Concordo com vc que é “um belíssimo texto” e também que nós “temos o poder de tecer a nossa historia”. Do ponto de vista individual (como mostra o texto) e também do ponto vista social. Esse ano, por exemplo, com a participação democrática da sociedade brasileira na eleição para presidente, senadores governadores e deputados(as) tecemos um capítulo novo, colocando uma mulher, pela primeira vez, para ser presidente do Brasil. Que Deus a abençoe e a nós todos, povo brasileiro, para tecermos juntos uma história de justiça e igualdade.
Beijos, querido aluno. Volte sempre aqui.
“Tecer era tudo o que ela fazia. Tecer era tudo que ela queria fazer...”