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sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Farejando Auroras...

"O melhor do mundo é a quantidade de mundos que ele contém." (Eduardo Galeano)



          Esse é o terceiro “natal do Mire e Veja Travessia”. Reconheço que nossos encontros aqui, neste ano, foram mais raros, mas, nem por isso, menos intensos.
      Sempre procuro, com cuidado e carinho, um texto capaz de despertar em nós, sensações dignas dessa época do natal de Jesus-Menino e dos desejos para o ano vindouro, ambos despertando em nós o sentimento de VIDA NOVA, DE NOVOS E BONS PROPÓSITOS. Sempre opto por textos de Frei Betto, um escritor poético e profético.
       Mas nesse ano foi diferente. O texto (crônica) veio parar em minhas mãos por meio de um professor, companheiro de sonhos, lutas e gosto poético. Não tive dúvidas: É o texto que procurava para esse espaço de reflexão que é o Mire e Veja. E ei-lo aqui. Contempla várias culturas, bem como mostra "uma das interpretações das lendas maias, do fim de um longo tempo de escuridão". Por isso eu luto e isso espero para 2013 em todos os cantos do mundo.
         E que o sentimento presente numa noite tão especial como a de Natal seja portador de muita PAZ, JUSTIÇA, AMOR E ALEGRIA no ano novo. Oxalá!

21/12/2012
 Farejando auroras...*
Elaine Tavares

         E então já está por aí o Natal. É o que me diz a televisão em promoções a granel. Já, para mim, essa não é uma data de presentes e compras compulsivas. É o aniversário de um dos meus deusinhos: Yeshua, Jesus. Digo deusinho porque não arrogo a ele poderes sobrenaturais. O vejo assim, homem, cheio de dúvidas sobre seu destino, a clamar pelo pai na cruz. O vejo menino, a questionar as leis junto aos velhos encarquilhados em certezas ultrapassadas e aprisionantes. O vejo jovem, a arrancar os outros de seu conforto, propondo a ilegalidade e a rebeldia. Gosto demais desse Jesus arrogante, a expulsar vendilhões do templo, denunciando-os e apontando-lhes o dedo. Encanto-me com o Jesus que se coloca diante do poder e, arriscando morrer, levanta a cara e diz ao ser acusado de ser deus: “assim o dissestes”. E se entrega ao juízo do povo, mesmo sabendo que esse mesmo povo que ele tanto amou, o vai abandonar, preferindo Barrabás. É esse guri que eu espero nas noites de natal. Aguardo, cheia de esperança, que ele renasça nos jovens que vejo andar por aí a fazer a luta, a questionar as leis, a apontar os vendilhões, a demolir as certezas de um sistema que mata e exclui.          
        Sei também que a data do natal está conectada a tempos ancestrais, celebrados desde as eras imemoriais por todas as culturas da terra. O solstício de verão, o começo de uma nova estação cheia de beleza e luz. Sei que era nesse dezembro que as gentes de outros tempos dançavam sob o fogo, cantavam e esperavam que a vida revivesse e a roda do mundo seguisse seu curso no rumo do bem-virá. Por isso, gosto também de me perder nessa esperança do povo andino, o Qhapac Rayme, e oferecer alimento a mãe-terra, Pachamama, confiando em suas bênçãos e na vida que brota. É alimento, e faz com que eu veja que as coisas sempre nascem, do nada, da dor, da desesperança, da desilusão. Há sempre um reviver. Isso é o natal, essa data mágica de todas as fés.     
         Então, quando chega esses dias de natal, gosto de celebrar. Um pouco como as culturas antigas, um pouco como as da minha gente ancestral, mas, nascida e criada na herança cristã, também me apetece compartilhar com meu deusinho o dia do seu nascimento. Porque Jesus, como tantas outras divindades de tantas outras religiões, nasce no dezembro, perto do solstício, essa noite curta que promete vida, e nada mais. Tão simples, tão densa. E, nesse 2012, ainda mergulhada nas interpretações das lendas maias, de fim de um longo tempo de escuridão. Porque é disso que falam os maias. Fim de uma era, começo de belezas... Talvez, como dizem os andinos, o começo de um novo pachakuti, uma virada de pernas para o ar de tudo que há. Outra lógica, outra forma de viver no mundo. Quem nos impede de crer? E de lutar por isso?            
        Assim, este ano, nesses dias que antecedem o natal, o fim da era maia, o novo pachakuti, vou adentrar pelas noites, farejando a vida. Que ela venha, pelas mãos dos velhos amigos, e na caminhada dos novos, que chegam agora e já se comprometem com tanta força. Espero-te meu deusinho, assim como espero todas as divinas criaturas capazes de brotar fogueiras em mim e em todos os que amo! Porque acredito que não há escolhidos, eleitos, nem deuses que são maiores que outros. Toda a crença do homem, inventada para sustentar seus terrores, remete a uma única e abençoada certeza: de que somos uma raça frágil, que necessitamos uns dos outros, e que estamos procurando, juntos, a terra sem males.           
         Então, desde o 21 de dezembro até o natal, que se dance pelas ruas, como dizia Nietzsche, e que seja tudo pelo bem das gentes. Todas as gentes, com todos os deuses e deusas... E que brote o amor, esse sentimento revolucionário, e que se mude a vida...   

Elaine Tavares é jornalista
Fonte: Jornal Brasil de Fato - 06 a 12 de dezembro de 2012 
*Grifo meu
p.s. Obrigada, Isael Marcos, por fazer tão belo texto chegar às minhas mãos. 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

O gigolô das palavras

“A melancolia ameaça. Queria ficar alegre sem precisar escrever” (Adélia Prado)


Luís Fernando Veríssimo
 Publicada em 1982, a crônica “O gigolô das palavras” despertou reações adversas. A crônica mostra o conflito entre o discurso conservador, "gramaticalista" e o discurso “liberal”, que questiona o ensino de língua materna como sendo o ensino da gramática da língua.
Gosto muito de trabalhar esse texto com meus alunos, pois dependendo da turma, o debate é bastante polêmico e produtivo. Adoro debater, instigar o pensar, comunicar “e quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover...”
Grande Luís Fernando Veríssimo!

O Gigolô das Palavras
Luís Fernando Veríssimo*


         Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua. Cada grupo portava um gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna, se descabelava diariamente com suas afrontas às leis da língua, e aproveitava aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas, minha defesa (“Culpa da revisão! Culpa da revisão!”). Mas os alunos desfizeram o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não. Então vamos em frente.
         Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever claro” não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover… Mas aí entramos na área do talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A Gramática é o esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em Gramática pura.
         Claro que eu não disse tudo isso para meus entrevistadores. E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas— isto eu disse — vejam vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado. Suas origens, sua família nem o que os outros já fizeram com elas. Se bem que não tenha também o mínimo escrúpulo de roubá-las de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.
         Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a tediosa formalidade de um marido. A palavra seria sua patroa! Com que cuidados, com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.
 
VERÍSSIMO, Luís Fernando. In. LUFT, Celso Pedro. Língua e liberdade: por uma nova concepção da língua materna e seu ensino. 8ª ed. São Paulo; Editora Ática, 2003. p.14-15.
* Grifo meu