Luís Fernando Veríssimo |
Publicada em
1982, a crônica “O gigolô das palavras” despertou reações adversas. A crônica
mostra o conflito entre o discurso conservador,
"gramaticalista" e o discurso “liberal”, que questiona o ensino de língua materna
como sendo o ensino da gramática da língua.
Gosto muito
de trabalhar esse texto com meus alunos, pois dependendo da turma, o debate é
bastante polêmico e produtivo. Adoro debater, instigar o pensar,
comunicar “e quando possível surpreender, iluminar, divertir, comover...”
Grande Luís
Fernando Veríssimo!
O Gigolô das
Palavras
Luís
Fernando Veríssimo*
Quatro ou cinco grupos diferentes de alunos do Farroupilha
estiveram lá em casa numa mesma missão, designada por seu professor de
Português: saber se eu considerava o estudo da Gramática indispensável para
aprender e usar a nossa ou qualquer outra língua. Cada grupo portava um
gravador cassete, certamente o instrumento vital da pedagogia moderna, e andava
arrecadando opiniões. Suspeitei de saída que o tal professor lia esta coluna,
se descabelava diariamente com suas afrontas às leis da língua, e aproveitava
aquela oportunidade para me desmascarar. Já estava até preparando, às pressas,
minha defesa (“Culpa da revisão! Culpa da revisão!”). Mas os alunos desfizeram
o equívoco antes que ele se criasse. Eles mesmos tinham escolhido os nomes a
serem entrevistados. Vocês têm certeza que não pegaram o Veríssimo errado? Não.
Então vamos em frente.
Respondi que a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de
comunicação e que deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas
regras básicas da Gramática, para evitar os vexames mais gritantes, as outras
são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso, não de princípios. Escrever
bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer “escrever
claro” não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar. (E quando
possível surpreender, iluminar, divertir, comover… Mas aí entramos na área do
talento, que também não tem nada a ver com Gramática.) A Gramática é o
esqueleto da língua. Só predomina nas línguas mortas, e aí é de interesse
restrito a necrólogos e professores de Latim, gente em geral pouco
comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas fotografias em
grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo
Português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o Português
morra para poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o
esqueleto que nos traz de pé, certo, mas ele não informa nada, como a Gramática
é a estrutura da língua mas sozinha não diz nada, não tem futuro. As múmias
conversam entre si em Gramática pura.
Claro que eu não disse tudo isso para meus entrevistadores.
E adverti que minha implicância com a Gramática na certa se devia à minha pouca
intimidade com ela. Sempre fui péssimo em Português. Mas— isto eu disse — vejam
vocês, a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a vida
escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria. Sou um gigolô das
palavras. Vivo às suas custas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften
profissional. Abuso delas. Só uso as que eu conheço, as desconhecidas são
perigosas e potencialmente traiçoeiras. Exijo submissão. Não raro, peço delas
flexões inomináveis para satisfazer um gosto passageiro. Maltrato-as, sem
dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular.
Não me interessa seu passado. Suas origens, sua família nem o que os outros já
fizeram com elas. Se bem que não tenha também o mínimo escrúpulo de roubá-las
de outro, quando acho que vou ganhar com isto. As palavras, afinal, vivem na
boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o
mínimo respeito.
Um escritor que passasse a respeitar a intimidade gramatical
das suas palavras seria tão ineficiente quanto um gigolô que se apaixonasse
pelo seu plantel. Acabaria tratando-as com a deferência de um namorado ou com a
tediosa formalidade de um marido. A palavra seria sua patroa! Com que cuidados,
com que temores e obséquios ele consentiria em sair com elas em público, alvo
da impiedosa atenção de lexicógrafos, etimologistas e colegas. Acabaria
impotente, incapaz de uma conjunção. A Gramática precisa apanhar todos os dias
para saber quem é que manda.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. In. LUFT, Celso Pedro. Língua e
liberdade: por uma nova concepção da língua materna e seu ensino. 8ª ed.
São Paulo; Editora Ática, 2003. p.14-15.
* Grifo meu
Para quem gosta (e precisa) ampliar essa discussão, como nós, professores de Língua Portuguesa, interessados em geral, deixo aqui alguns títulos que li e que me auxiliaram a ousar sair um pouco mais do tradicional ensino centrado na gramática e praticar melhor a proposta dos PCNs para essa área. Não é fácil sair da “zona de conforto”, mas vale a pena tentar (e muito!)
ResponderExcluirSão eles:
- Língua e Liberdade – Celso Pedro Luft – Ática;
- Muito além da gramática - por um ensino de línguas sem pedras no caminho – Irandé Antunes – Parábola Editorial;
- Preconceito linguístico – o que é, como se faz – Marcos Bagno – Edições Loyola
- Sofrendo a gramática - Mário A. Perini – Editora Ática
- Por que (não) ensinar gramática na escola – Sírio Possenti – Mercado de Letras.
Dentre outros...
Olá galera, olá Sora Lira,
ResponderExcluirQue maravilha de postagem. Despertaram lembranças muito boas, do 3º B (2010), quando debruçamos sobre essa crônica. Lembro até de você apresentando o "Preconceito linguístico - de Marcos Bagno". Que Deus continue a abençoar sua missão de Filosofa, Semeadora de discussões, de Mestra, de Questionadora, de Educadora humana-cidadã nos levando a travessias transformadoras de vidas.
Concordo com Veríssimo, "a intimidade com a Gramática é tão dispensável que eu ganho a vida escrevendo, apesar da minha total inocência na matéria". Eu também. Eu que o diga! A Sora Lira me ensinou a não ter medo da gramática, nem da Língua Portuguesa. Aprendi, antes de tudo, que ela é minha Língua Materna, pela qual, hoje, me expresso e sou mais.
Obrigado Profa por motivar essa discussão, que ela continue "Além do Luar".
Até breve! Bja Lira!
EMOÇÃO. AMÉM. OBRIGADA.
ResponderExcluirAgradeço a Deus por ter colocado em meu caminho alunos tão especiais, assim como VOCÊ e tantos outros e outras, que fazem com que eu "AINDA" continue acreditando na educação, no ser humano, na vida, enfim!!!
Muita luz e bênçãos em seu caminho, hoje e sempre. Mil bjos "Além do Luar", lindo poeta... Amo vc!!!